Crónica de Licínia Quitério | OS SÓTÃOS

Crónica de Licínia Quitério

De ontem e de hoje |OS SÓTÃOS

por Licínia Quitério

 

As casas das famílias têm mudado muito, no tamanho e na ocupação dos espaços. No meu tempo antigo,  nas casas das famílias de médios recursos havia uma sala de jantar, com o seu mobiliário típico, uma mesa, meia dúzia de cadeiras, um aparador, um guarda-loiça e, para os mais afortunados, uma cristaleira. Hoje a gente nova prefere o “open space”, onde se distribuem uma pequena  cozinha, uma sala a que chamam comum, com lugar para refeições e outro para socializar, isto é, receber dois ou três amigos, com um grande ecrã na parede. Sobre as pequenas mesas nem um só cinzeiro, o que diz da pureza de aspirações das novas gerações ao contrário da minha, fumadora, pecaminosa. Às vezes há livros arrumadinhos em prateleiras de fraca resistência. Um ou outro móvel que era dos avós, depois de repintado e reformulado, dá o toque de respeito pelos ancestrais, gente que viveu antes do frigorífico, do rádio a pilhas, da televisão de que nem se falava. As crianças são agora mais felizes, têm direito aos seus espaços privados, porta fechada, adulto não entra, brincando nos seus apetrechos virtuais, sem sequer virem cumprimentar os velhos que estão lá entretidos com conversas parvas. Se por eles tiverem que passar, a correr, soltam um “hey” ou “hum” que mais parece um grunhido.

Se falo assim do lar de certo estrato da classe a que se combinou chamar média, com alguma displicência e mal acabada ironia, será porque as mudanças no mundo, nas nossas vidas, têm sido tantas e em ritmo tão acelerado que só me resta parar, observar, desistir de perceber aonde o caminho irá dar, com que gente, com que sonhos,  sorrir e tentar passar o sorriso a outros.

Já disse o que me apeteceu sobre as zonas de suposta convivialidade e outras mais reservadas a que chamam “sociais”, WC’s incluídos, para não perturbarem a intimidade de lugares reservados aos locatários.

Agora o que eu estou mesmo é mortinha por falar dos sótãos, esses cantos e recantos, mal iluminados, vizinhos da cobertura, de acessos difíceis, com acessos estreitos, inclinados, encaracolados, retorcidos. Mas ah, chegados ao esconderijo, é um mundo fora deste que se apresenta. Nos sótãos dormem passados, memórias, segredos, histórias em pedaços que, se nos demorarmos e bem escutarmos, nos irão sendo contadas pela cadeira de perna quebrada, pelo espelho rachado, pelo caixote dos bonecos de crianças que já houve, pelas ferramentas enferrujadas. Sempre presente, o cheiro, aquele cheiro a poeira, a mofo, a verdete, a livros roídos pelas traças, a algo indefinido que pode ser o lodo que se formou e acamou nos cantos mais escusos a que não acedemos, talvez por recearmos os buracos nas tábuas do soalho ou por respeitarmos os lugares mais esconsos que o passado ainda não quer revelar.
Até a palavra sótão, pelo menos na acessão aqui relatada, deixou de ser usada. Terá outros nomes ou talvez nem sequer tenha lugar na exiguidade dos lugares modernos, de espaço aberto, sem o privilégio de um desvão secreto.

Licínia Quitério

 


Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Livros publicados: Poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia, (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna); A Decadência das Falésias; Participações em antologias diversas. Ficção: Disco Rígido, Volumes I e II;  Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem; A Tribo; Mala de Porão; Discurso Directo. Tradução: O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


 

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